A casa funciona como um espaço de cura física e mental; entenda
Em um mundo onde a pandemia redefiniu nossa relação com o lar, testemunhamos a metamorfose dos espaços domésticos. O que antes era simplesmente uma residência, torna-se um refúgio, um santuário, um templo da alma.
Essa mudança profunda reflete não apenas a evolução das circunstâncias, mas também a transformação interior que experimentamos. A casa do futuro é mais do que apenas um lugar para viver; é um catalisador para a cura e o bem-estar.
Segundo a semioticista Clotilde Perez, professora da Universidade de São Paulo (USP) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e fundadora da Casa Semio, após a pandemia, a casa passou a ser o espaço possível para a vivificação e o fortalecimento físico, espiritual e moral.
“É nela que recobramos as forças necessárias para seguir enfrentando um cotidiano bastante ameaçador e com imensa dificuldade de se mostrar razoável com o futuro”, analisa.
A intenção, portanto, permeia cada parede, cada móvel, cada objeto. Não se trata apenas de decoração, mas de uma aura que nos envolve, acolhe e conecta a algo maior que nós mesmos. Os elementos simbólicos se entrelaçam em cada canto, evocando memórias, resgatando tradições e convidando à contemplação. E vai além.
“Eu vejo a casa como um portal do que a gente quer para o futuro. Que mensagens o seu lar envia? Se for bagunça e caos, é isso que vai atrair. Quando colocamos, por exemplo, intenções programadas, objetos que representem algo que queremos viver, a casa pode virar um grande altar, conectando-se com essa energia e facilitando o processo de atrair para a vida aquilo que se deseja”, diz a consultora e terapeuta da alma Fabiola Carvalho, fundadora da Home & Soul.
Como ter uma casa verdadeiramente especial? A resposta passa pela capacidade de torná-la um espaço sensorial. Cada sentido é despertado e nutrido: o toque suave dos tecidos e dos elementos naturais, o aroma reconfortante que muda o mindset, a luz natural que dança pelas paredes, a beleza das plantas que nos reconecta com a natureza, o espaço pensado para receber os amigos.
“Tudo que a gente acredita que nos traz conforto tem presença forte hoje nas nossas casas, tornando-as regenerativas”, diz Andrea Bisker, trend forecaster e CEO da Spark:off. Dessa forma, a ancestralidade é um item importante levantado por ela nesta construção, com a valorização dos designers brasileiros e a conexão com o passado e as próprias raízes.
Por outro lado, a tecnologia desempenha papel importante, já que pode gerar confortos integrativos e regenerativos. Tanto que as casas tecnológicas conectadas já são uma realidade, e a tendência é se tornarem cada vez mais presentes. O comando de voz aparece como essencial nesse contexto para “pedir coisas” para a casa.
E não para por aí: com a impactante entrada da Inteligência Artificial (IA) na nossa maneira de morar, será possível delegar serviços acontecendo naturalmente, como se a casa fizesse uma leitura de nossas necessidades.
Embora esse lar seja um templo pessoal, ele vai além de seu contexto privado e reflete as nossas escolhas. “Dessa forma, se não incluir ‘regeneração’, a palavra ‘sustentabilidade’ sustentará o que não está bom”, afirma Ligia Zotini, pesquisadora de futuros e fundadora do Voicers. Como também é preciso olhar o reúso com simpatia e repensar o design puramente pela estética.
A ambição da vida ao ar livre
Para Clotilde, a iminência da morte e o sofrimento despertados pela pandemia trouxeram um reforço das manifestações de busca pela espiritualidade. “Nunca se viu tanta espada-são-jorge e comigo-ninguém-pode, além de outras plantas que cumprem essa função de proteção. Do mesmo modo, a casa toda passou a ser pensada em múltiplas perspectivas de bem-estar: jardim, vasos e varandas”, observa.
As plantas, de modo geral, invadiram os interiores das casas em uma busca pelo reencontro com a natureza. “Em algum momento começamos a falar da natureza em terceira pessoa, mas nós somos também natureza por sermos vivos. Por isso queremos estar perto dela, já que regeneramos perto do que é vivo”, diz Tania Zacharias, estudiosa da farmácia ancestral egípcia e fundadora da INNER.Co.
Por essa razão, a arquiteta Ana Sawaia destaca a inserção do design biofílico, o uso de materiais orgânicos, o tingimento natural e inserções botânicas nos projetos. “As plantas naturais são sempre bem-vindas, elas trazem vida, energia, vão mudando durante as estações, crescendo. Dependem de cuidado e atenção, que são recompensados com a beleza de vê-las cada vez mais bonitas”, analisa.
Também pela imposição pandêmica, o convívio ao ar livre se tornou um desejo, com espaços integrados à área externa, com livings abertos, lounges externos e áreas gourmet e de lazer.
“O lar do futuro que não considera o natural e a natureza para perto de quem somos não será considerado um local capaz de nos fazer descansar e regenerar”, acredita Ligia.
O conforto tátil e térmico
Um lar bem trabalhado com os cinco sentidos pode ativar o sexto sentido, segundo Fabiola. “Uma casa que ‘abraça’ pode ativar nosso caminho de intuição e conexão interna, para vivermos cada vez mais em harmonia com o que somos internamente”, diz ela.
Assim, é importante pensar em elementos que tragam essa atmosfera. A luz natural entrando na casa, por exemplo, é muito importante tanto para a salubridade quanto para o bem-estar. Grandes janelas ou recursos que permitam a luz entrar são bem-vindos, como claraboias.
“Adoro ver o céu, então indico sempre vidro incolor e transparente. É importante ser insulado, ou seja, duplo com um colchão de ar entre eles, para o conforto acústico”, diz Ana.
Cobogós, brises e muxarabi são outras possibilidades que criam essa conectividade com o exterior. Texturas e materiais naturais sempre dão maior sensação de acolhimento.
A aromaterapia como regeneração
Como a casa é viva, há um campo de pensamento concreto estabelecido pela vivência das pessoas que ali habitam. Por isso, pode ser um lugar medicinal de regeneração ao trabalhar as sensações. “A aromaterapia entra nesse contexto como um grande propulsor da casa sensorial, pois pode fazer uma recodificação interna que vem através do relacionamento com a alma das plantas, que são os óleos essenciais”, diz Tania.
Segundo ela, quando nos relacionamos com um óleo essencial – que vem de uma planta, que, por sua vez, tem alma e códigos fundamentais pois é um ser vivo –, é como se aprendêssemos com um especialista.
“Se você está precisando de determinado tipo de tonificação que eu descobri conversando e decodificando você, eu indicarei um aroma capaz de modificá-la. Por exemplo, ao sugerir o uso de bergamota, é como se você e a espécie iniciassem um relacionamento em que será possível você se reprogramar internamente. Funciona como um professor que entra no sistema límbico e na corrente sanguínea para trabalhar as suas emoções”, afirma Tania.
Os aromas, portanto, são vivos e ativam também memórias. “A sinestesia que eles têm na cozinha, por exemplo, enche de afetividade o lar ao lembrar do nhoque feito pela bisavó, do assado preparado pela avó ou da torta de framboesa da mãe”, pontua Ana. Por isso, a casa do futuro pode ser um lugar medicinal de regeneração ao se trabalhar as sensações de várias formas.
O reúso como instrumento de sustentabilidade
O conceito de sustentabilidade para as casas do futuro vai muito além da reciclagem ou do uso de materiais que causam menos impacto. “O design puramente pela estética precisa ser repensado, por mais acolhedor e princípios que tenha. O design que olha para o futuro está mais vinculado ao processo do que à forma em si. É preciso saber a origem e alimentar a cadeia de consumo correta”, diz o arquiteto Vitor Penha.
Nesse sentido, é importante valorizar o reúso para que os resíduos tenham a oportunidade de serem reconfigurados. “Quando se faz uma casa com esse processo, gera um sentimento de conexão com o coletivo”, acredita Vitor.
“Os móveis e objetos, por exemplo, podem contar histórias e trazer memórias. Olhar com cuidado para essas peças, além de ser sustentável, cria uma conexão afetiva, que muitas vezes passa de geração para geração”, diz Ana Sawaia.
Entender a relação com o dinheiro também é importante nesse contexto, pois tudo que está dentro de uma casa um dia foi dinheiro. “É importante se perguntar o que o seu dinheiro nutriu ao comprar determinado produto. O dinheiro é um poderoso instrumento de transformação, porque quando você compra algo está falando: concordo com isso, continue fazendo”, diz Tania.
Desta forma, ao entrar na casa, estão todos os sinais da existência do morador sem ele dizer uma palavra. “A questão é quais códigos você quer colocar”, questiona Vitor.
A ânsia de reunir e celebrar
Depois do isolamento social imposto pela pandemia, é natural o forte desejo de estar próximo, de reunir e celebrar, especialmente em casa, um lugar que ganhou importância nessa fase.
A cozinha assumiu protagonismo em tal contexto. É um espaço cheio de vida, movimento, sabores e aromas carregados de memórias afetivas. “Eu cozinho todas as noites, adoro. É quase uma terapia para mim e traz lembranças boas, assim como me instiga a fazer algo novo”, diz Ana.
A cozinha integrada com o living, por exemplo, é perfeita para promover encontros, conversar, preparar a comida e ouvir música. Livings integrados, adega com espaço para degustar vinhos, um canto para café, lounges no jardim com lareira ou fogo de chão também são alguns dos recursos em alta e que devem permanecer com a intenção de reunir amigos e promover a convivência na casa sensorial.
A tecnologia a favor do conforto
É fato que a tecnologia é um ponto importante no conforto e na rotina das pessoas, tanto que as casas tecnológicas conectadas já são uma realidade. O arquiteto Guto Requena, que tem testado e mora em uma casa conectada, além de aplicar o conceito em seus projetos, destaca o comando de voz como item essencial nesse contexto para “pedir coisas para a casa”.
Outro fator impactante na maneira de morar apontado pelo arquiteto é a introdução da Inteligência Artificial (IA). “Hoje ainda não está tão desenvolvida para as casas, mas, em pouco tempo, amparada pelos assistentes de voz, a IA nos dará mais inputs, perguntar como estamos, entender nosso comportamento e a nossa rotina para entregar um serviço mais eficiente”, vislumbra.
Esse conforto considera tecnologias sintéticas – baseadas nas máquinas – e humanas para soluções mais integrais. Além de criar e comandar os lugares e as programações de cada ambiente – controlar temperatura e luzes, ligar aparelhos e dar segurança, por exemplo –, será possível criar lugares com inteligências integrais que geram confortos integrativos e regenerativos.
“Por exemplo, aparelhos liderando pequenas compras, com a delegação de serviços acontecendo naturalmente, como uma assistente doméstica de hoje, isso daqui uma década e meia”, prevê Ligia.
Ela também aponta uma segunda camada daqui 15 a 20 anos, que é a decoração baseada em realidade aumentada, como NFT, artes compradas e únicas desenhadas para as pessoas, sendo que parte estará no digital, ou seja, quem não tiver o gadget talvez não veja toda
Sobre a IA regenerativa manter nossos bem-estar e saúde, Ligia cita espelhos inteligentes e captura de biofeedback a partir de banheiros que analisam os materiais liberados diariamente para serem os guardiões da saúde. “Isso vai aumentando nosso conforto e bem-estar por conta de a tecnologia ser um lugar cada vez mais monitorável, de ambientes e corpos”, conclui.
Nesse contexto tecnológico, a natureza não fica de fora, pelo contrário, há uma sinergia. A previsão é que as casas do futuro sejam um lugar de paz, repouso e tranquilidade, com materiais orgânicos e biodegradáveis e elementos biofílicos para melhorar a qualidade do ar e o bem-estar, que serão inclusive mantidos com sistema de irrigação por comando de voz.
“E a IA vai ser um ‘ler a mais’, ou seja, a casa entenderá se o morador está cansado ou feliz, oferecer música ou mudar a iluminação. E isso transformará muito o modo de viver em casa e auxiliar no ritual de torná-la um lugar de bem-estar”, diz Guto.
expresso.arq com informações de Rosana Ferreira